Faz pouco, ainda nesse segundo semestre de 2025, fui convidado a dar aula para uma turma de Gestores de Empresas. Comecei com um ponto que acredito ser fundamental: realmente entedemos o conceito jurídico e seus desdobramentos "de quem é o empresário"?
O Brasil criou empresas, mas manteve comerciantes: esse é o preço cultural do devedor contumaz.
Se decidir melhor é a pergunta, o problema começa antes: o Brasil empreende com a cabeça de um mascate e tributa como se tivéssemos gestores suíços.
É uma aberração cultural silenciosa — e você a vê todos os dias quando um empreendedor, “donodaempresa”, abre o caixa da pessoa jurídica para pagar a ração do cachorro, a fatura da viagem ou o cartão de crédito pessoal… melhor, quando dizemos e identificamos as empresas por seus sócios, no mito cultural de que essa é o próprio negócio. Depois se espanta quando vira, na prática, devedor contumaz.
O país mudou de modelo jurídico, mas nossa mentalidade não acompanhou. E agora o Congresso resolveu colocar um holofote em cima disso.
Do comerciante ao “empresário”: a mudança que nunca aconteceu.
O Brasil pulou do conceito do comerciante — o sujeito que é o próprio negócio — para o modelo de empresa, pessoa jurídica, um ente que existe independentemente de quem o criou, sem fazer o movimento cultural necessário. O peso da inexistência dessa mudança cultural é que as más práticas são vistas e compartilhadas com as novas gerações que as incorporam ser crítica aprofundadas.
Mas o que significa modelo de empresa?:
---> Posso trocar todos os sócios hoje e a empresa continua viva amanhã. (Não é sobre quem é o investidor, mas sobre o modelo de negócio);
---> Posso deixar todos os sócios em casa e colocar administradores profissionais para tocar a operação. (O CEO e o Administrador são importantes, mas não precisam ser "donos", então, donos também não são automaticamente gestores, ser dono e gestor impõem um conceito que separa essas posições);
---> Posso ter uma empresa cujo único sócio é… outra empresa. (Sequer precisamos de donos que sejam pessoas físicas).
Ou seja: o dono não é a empresa; e a empresa não é o dono. Simples no direito, confuso na mente do empreendedor brasileiro.
Culturalmente, a empresa limitada, a sociedade anônima, eram vistas como “coisa de gigante”. O pequeno empresário cresceu sem educação executiva, sem manual de decisões, sem cultura de governança, sem noção clara de onde ele termina e onde a empresa começa.
O resultado? Decisões ruins — sempre.
A maioria dos problemas nasce aqui: as pessoas decidem como se fossem o próprio negócio. E sobrevivem (ou tentam) a partir desse sentimento de fusão pessoal:
---> Tiram dinheiro do caixa para pagar contas da casa.
---> Viajam no cartão da empresa.
---> Ignoram prazos tributários.
Resumo: Escolhem conforme a urgência doméstica, não conforme a saúde financeira da pessoa jurídica.
É assim que um empreendedor comum vira devedor contumaz sem perceber: não por malícia, mas por cultura.
O Congresso quer criar “o manual do bom contribuinte” — só que ninguém quer ser um bom contribuinte.
O novo Projeto de Lei sobre conformidade tributária tenta, no fundo, criar uma cartilha moral.
Só que existe um pequeno detalhe sociológico:
ninguém no Brasil quer ser o “bom contribuinte”.
Todos querem contribuir o mínimo possível — e isso vale para ricos, pobres, MEIs, S/As e multinacionais.
Por isso, o capítulo do devedor contumaz virou manchete. É o recado óbvio:
---> “Agora não dá mais para fingir que esqueceu do Estado.”
Mas o Projeto faz algo mais interessante: ele organiza padrões, pisos de valores, janelas de regularização e regras de conduta que servem como referência despenalizadora.
E isso é muito maior do que parece.
STJ, crime tributário e a luz importante trazida pelo Projeto
Hoje, o STJ entende que o devedor contumaz pode cometer crime, especialmente quando há:
*inadimplência sistemática e deliberada,
*apropriação indébita de ICMS,
*competição desleal baseada em sonegação.
O Projeto não “passa pano”, mas traz balizas objetivas que podem:
---> limitar exageros,
---> reduzir criminalização automática,
---> diferenciar o calote estrutural da crise de caixa real,
---> dar previsibilidade jurídica para quem decide.
Isso é ouro para administradores, diretores e conselheiros.
O ponto central que quase ninguém está percebendo
O Projeto nasce junto com o novo regime tributário brasileiro. Ou seja: não é apenas uma lei sobre comportamento.
É, na prática, o primeiro manual de governança fiscal para empresas brasileiras.
E isso muda tudo.
Porque agora:
decisões documentadas protegem administradores;
*a “cultura do comerciante” deixa de ser desculpa;
*conselhos e diretorias precisam revisar suas políticas internas;
*empreendedores não podem mais alegar “não sabia”; a separação entre pessoa física e pessoa jurídica ganha contornos reais.
Por que isso importa para quem quer decidir melhor? Porque decidir bem exige:
1. entender o modelo jurídico no qual você está inserido,
2. romper com o vício cultural da fusão PF/PJ,
3. adotar práticas de governança mesmo em empresas pequenas,
4. criar uma lógica de caixa que sobreviva sem o dono,
5. ler e aplicar este novo manual do contribuinte como ferramenta estratégica,
6. documentar decisões como se sua liberdade dependesse delas — porque às vezes depende.
No fundo, o devedor contumaz não é apenas um problema fiscal.
É um sintoma da nossa incapacidade coletiva de entender que empresa é uma estrutura, não um prolongamento emocional da vida pessoal.
O resto — inclusive a lei — começa a fazer sentido!