Frederico Cattani

Advogado com experiência em aconselhamento de gestores e empresários | Atua em matérias complexas que exigem conhecimento, estratégia e senioridade | Conselhos Consultivos e de Administração | Direito Penal Econômico e Crimes Empresariais | Direito Eleitoral e Assessoria de Pessoas Públicas | Sucessão Familiar e Societária

12/11/25

Devedor contumaz: o custo cultural do empreendedor brasileiro

Faz pouco, ainda nesse segundo semestre de 2025, fui convidado a dar aula para uma turma de Gestores de Empresas. Comecei com um ponto que acredito ser fundamental: realmente entedemos o conceito jurídico e seus desdobramentos "de quem é o empresário"?

O Brasil criou empresas, mas manteve comerciantes: esse é o preço cultural do devedor contumaz.

Se decidir melhor é a pergunta, o problema começa antes: o Brasil empreende com a cabeça de um mascate e tributa como se tivéssemos gestores suíços. 

É uma aberração cultural silenciosa — e você a vê todos os dias quando um empreendedor, “donodaempresa”, abre o caixa da pessoa jurídica para pagar a ração do cachorro, a fatura da viagem ou o cartão de crédito pessoal… melhor, quando dizemos e identificamos as empresas por seus sócios, no mito cultural de que essa é o próprio negócio. Depois se espanta quando vira, na prática, devedor contumaz. 

O país mudou de modelo jurídico, mas nossa mentalidade não acompanhou. E agora o Congresso resolveu colocar um holofote em cima disso.

Do comerciante ao “empresário”: a mudança que nunca aconteceu.

O Brasil pulou do conceito do comerciante — o sujeito que é o próprio negócio — para o modelo de empresa, pessoa jurídica, um ente que existe independentemente de quem o criou, sem fazer o movimento cultural necessário. O peso da inexistência dessa mudança cultural é que as más práticas são vistas e compartilhadas com as novas gerações que as incorporam ser crítica aprofundadas.

Mas o que significa modelo de empresa?:

---> Posso trocar todos os sócios hoje e a empresa continua viva amanhã. (Não é sobre quem é o investidor, mas sobre o modelo de negócio);

---> Posso deixar todos os sócios em casa e colocar administradores profissionais para tocar a operação. (O CEO e o Administrador são importantes, mas não precisam ser "donos", então, donos também não são automaticamente gestores, ser dono e gestor impõem um conceito que separa essas posições);

---> Posso ter uma empresa cujo único sócio é… outra empresa. (Sequer precisamos de donos que sejam pessoas físicas).

Ou seja: o dono não é a empresa; e a empresa não é o dono. Simples no direito, confuso na mente do empreendedor brasileiro.

Culturalmente, a empresa limitada, a sociedade anônima, eram vistas como “coisa de gigante”. O pequeno empresário cresceu sem educação executiva, sem manual de decisões, sem cultura de governança, sem noção clara de onde ele termina e onde a empresa começa.

O resultado? Decisões ruins — sempre.

A maioria dos problemas nasce aqui: as pessoas decidem como se fossem o próprio negócio. E sobrevivem (ou tentam) a partir desse sentimento de fusão pessoal:

---> Tiram dinheiro do caixa para pagar contas da casa.

---> Viajam no cartão da empresa.

---> Ignoram prazos tributários.

Resumo: Escolhem conforme a urgência doméstica, não conforme a saúde financeira da pessoa jurídica.

É assim que um empreendedor comum vira devedor contumaz sem perceber: não por malícia, mas por cultura.

O Congresso quer criar “o manual do bom contribuinte” — só que ninguém quer ser um bom contribuinte.

O novo Projeto de Lei sobre conformidade tributária tenta, no fundo, criar uma cartilha moral.

Só que existe um pequeno detalhe sociológico:

ninguém no Brasil quer ser o “bom contribuinte”.

Todos querem contribuir o mínimo possível — e isso vale para ricos, pobres, MEIs, S/As e multinacionais.

Por isso, o capítulo do devedor contumaz virou manchete. É o recado óbvio:

---> “Agora não dá mais para fingir que esqueceu do Estado.”

Mas o Projeto faz algo mais interessante: ele organiza padrões, pisos de valores, janelas de regularização e regras de conduta que servem como referência despenalizadora.

E isso é muito maior do que parece.


STJ, crime tributário e a luz importante trazida pelo Projeto

Hoje, o STJ entende que o devedor contumaz pode cometer crime, especialmente quando há:

*inadimplência sistemática e deliberada,

*apropriação indébita de ICMS,

*competição desleal baseada em sonegação.

O Projeto não “passa pano”, mas traz balizas objetivas que podem:

---> limitar exageros,

---> reduzir criminalização automática,

---> diferenciar o calote estrutural da crise de caixa real,

---> dar previsibilidade jurídica para quem decide.

Isso é ouro para administradores, diretores e conselheiros.

O ponto central que quase ninguém está percebendo

O Projeto nasce junto com o novo regime tributário brasileiro. Ou seja: não é apenas uma lei sobre comportamento.

É, na prática, o primeiro manual de governança fiscal para empresas brasileiras.

E isso muda tudo.


Porque agora:

decisões documentadas protegem administradores;

*a “cultura do comerciante” deixa de ser desculpa;

*conselhos e diretorias precisam revisar suas políticas internas;

*empreendedores não podem mais alegar “não sabia”; a separação entre pessoa física e pessoa jurídica ganha contornos reais.

Por que isso importa para quem quer decidir melhor? Porque decidir bem exige:

1. entender o modelo jurídico no qual você está inserido,

2. romper com o vício cultural da fusão PF/PJ,

3. adotar práticas de governança mesmo em empresas pequenas,

4. criar uma lógica de caixa que sobreviva sem o dono,

5. ler e aplicar este novo manual do contribuinte como ferramenta estratégica,

6. documentar decisões como se sua liberdade dependesse delas — porque às vezes depende.


No fundo, o devedor contumaz não é apenas um problema fiscal.

É um sintoma da nossa incapacidade coletiva de entender que empresa é uma estrutura, não um prolongamento emocional da vida pessoal.

O resto — inclusive a lei — começa a fazer sentido!