sexta-feira, 2 de março de 2012

Leituras sobre as provas e as normas de trânsito (art. 305 e 306)


       A convenção americana de direitos humanos de 1969, também conhecida como pacto de San José da Costa Rica, o qual o Brasil é signatário, parte de uma leitura da qual à toda pessoa são reconhecidos direitos e a liberdade, assistindo a estas pessoas uma garantia de exercê-los livre e plenamente. No mesmo tocante, nesta garantia de liberdade e de livre exercício de direitos, ficou resguardado ao acusado não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a confessar-se culpado.
       Os debates sobre a lei seca geraram diversos discursos acalorados e, neste contexto, adotou-se o entendimento uniforme pelo qual ao condutor fica livre o direito de fazer ou não fazer o bafômetro. Tal condição fica expressa sobre o fundamento da liberdade do exercício de praticar provas ou confessar-se culpado, assegurando o direito de permanecer calado que, em extensão interpretativa a favor do réu, seria o de escolher em deixar de fazer tal prova que seria igual a confessar falando sua culpa (art. 5°. LXIII da Constituição Federal). Neste sentido, o artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro vem sendo declarado como norma ineficaz, pois o crime somente surge com a prova expressa de que ao condutor fora auferido concentração de  álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas. Tais debates foram pontuais e não merecem maiores comentários neste momento, somente restando salientar as propostas porvindouras. Isto, pois, senadores estão manifestando a intenção de alterar a letra da lei, para substituir esta aferição imposta a uma prova necessária pelo acusado, e  passar a autoridade policial a capacidade de auferir por meios diversos os sinais de embriagues do condutor (outro questão polêmica).
       O ponto de debate surge de outro tipo previsto no Código Trânsito, em seu artigo 305, o qual rege: “Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.” Estaria este tipo penal igualmente impondo ao acusado um dever de fazer prova contra si mesmo?
       Segundo o órgão Especial do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, e a 2ª Câmara Criminal do TJ catarinense, o artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro, que prevê como crime a atitude do condutor de veículo automotor que foge do local do acidente com o intuito de não ser responsabilizado penal ou civilmente, é inconstitucional. Os julgadores defendem ser desnecessário o condutor aguardar a chegada da autoridade competente para averiguação da responsabilidade civil ou penal, visto que isso seria impor ao condutor a obrigação de produzir prova contra si, situação vedada pela Constituição Federal (exemplo Apelação Criminal 2009.026222-9 TJ-SC).
       Contudo, tal decisão não é isolada e vem sendo muito debatida nos julgados e pela doutrina. A atipicidade pela interpretação do texto legal permite inferir que o legislador extrapola as normas de controle social, afetando a liberdade do indivíduo de ir e vir.  Ora, se teve o legislador por finalidade constranger os condutores de veículos a permanecerem no local do fato aparentemente delituoso, com o único intuito de facilitar a atuação da polícia, observa-se que o critério defendido muito próximo fica da obrigação de fazer prova no bafômetro, ou de falar sempre que questionado, e assim, sucessivamente. Logo, se o Brasil defende e assegura o livre exercício da liberdade por outro viés (de quem sabe e sentiu os efeitos de uma ditadura), inconstitucional tal dispositivo (art. 305 do Código de Trânsito).

       Por esta razão, sempre importante compreender que as medidas penais são instrumentos de controle social formal de ultima instância, devendo o Estado, através de medidas eficazes no âmbito da Administração Pública, apurar o cometimento de delitos praticados sem ferir a liberdade dos indivíduos, respeitando princípios de inocência e, sempre quando possível, impedido que tais situações ocorram. É defender a inconstitucionalidade de qualquer dispositivo que nos aproxime de um Estado totalitário, cerceador de direitos e garantias.

       Exposta a situação, existem diversos julgados que não interpretam a inconstitucionalidade do dispositivo, a título de ilustração, o HC 137340 / SC: “O art. 305 do Código de Trânsito, que tipifica a conduta do condutor de veículo que foge do local do acidente, para se furtar à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída, não viola a garantia da não auto-incriminação, que assegura que ninguém pode ser obrigado por meio de fraude ou coação, física e moral, a produzir prova contra si mesmo”. Mesmo assim, vale salientar os dizeres de Flavio Gomes: "Cuida-se de dispositivo incriminador extremamente contestável. Que todos temos a obrigação moral de ficar no local do acidente que provocamos não existe a menor dúvida. Mas a questão é a seguinte: pode a obrigação moral converter-se em obrigação penal?".